quarta-feira, 20 de março de 2013

O Peter Pan do Pop (Newsweek, Janeiro 1983)

Newsweek, 10 de janeiro de 1983

Michael Jackson, astro infantil que se transformou em superastro, ainda sonha em voar e tem uma lhama de estimação chamada Louis.

É um som vertiginoso e glamuroso. Palmas soam, acordes ressoam. Guitarras elétricas rangem como um corpo de tambores africanos. Uma voz suspira e então se rende ao refrão. E assim são os primeiros segundos de Wanna Be Startin' Somethin', seis minutos de um frenesi musical de um novo álbum da Epic chamado Thriller. O estilo arrasador só poderia vir de um astro - Michael Jackson.

Por quase 14 anos, Jackson têm feito sua própria marca na história do show business. Ele apareceu primeiramente em 1969, como a dinamite dançante de 10 anos de idade que cantava e girava com o Jackson 5, um quinteto de irmãos alegres. Ao longo das décadas seguintes, ele ajudou a vender mais de 90 milhões de discos, tanto com seus irmãos como quanto artista solo. Herdeiro da grande tradição de performers negros, ele também se tornou um grande da gravação moderna. Em 1979, ele ajudou a trazer a música negra aos anos 80 com Off The Wall, uma coleção luminosa de hits dance contemporâneos, incluindo quatro singles Top 10 - o maior número que algum artista solo já conseguiu emplacar em toda a história da indústria fonográfica.

Supereletrizado: Agora, aos 24 anos, Jackson parece pronto para outra onda. Ele compôs e produziu o recente hit Top 10 de Diana Ross, Muscles. Ele narrou e cantou uma canção para o álbum de histórias de E.T., o Extraterrestre. E para Thriller, sua altamente esperada sequência de Off The Wall, ele modelou uma coleção de clássicos pop supereletrizados para os anos 80 - brilhantes, futuristas, com batidas ornamentadas.

Apesar do seu estilo bem característico, Michael Jackson ainda permanece como uma espécie de enigma. No palco, com uma de suas roupas brilhosas, ele é esta extravagante figura cheia de graça, um jaguar elegante pronto para atacar. Em fotografias, ele é uma criatura de doce sensualidade, sedutor, angelical, andrógino. Pessoalmente, no entanto, ele é quieto e reservado, um jovem desengonçado de cautelosa reticência, com uma aura ingênua de encantamento.

Ele mora com sua mãe e suas duas irmãs mais novas em uma mansão de estilo Tudor no Vale de São Fernando. No jardim ele mantém um pequeno alojamento que inclui uma lhama chamada Louis, uma jibóia chamada Muscles e um carneiro chamado Sr. Tibbs. "Eu acho que eles são encantadores," disse Michael, com sua voz sussurrante. "Eu gosto de espiar o mundo deles e observar o modo como eles se mexem. Eu gosto de ficar olhando eles." Ele é igualmente fascinado pelo mundo infantil. "Quando eu estou chateado com alguma sessão de gravação, eu pego minha bicicleta e vou até o jardim da escola infantil, só para poder ficar um pouco com eles. Quando volto ao estúdio, estou pronto para mover montanhas. As crianças fazem isto comigo. É algo mágico."

Magia é a chave. É uma palavra que Jackson usa com uma frequência desarmante, como se conjurasse uma Terra do Nunca de constante encantamento. Beethoven, Rembrandt, Charlie Chaplin - todos eles são mágicos para ele. Certamente foi mágico quando ele conheceu o E.T.: "Ele me abraçou, colocou os braços em volta de mim. Ele parecia tão real que eu conversei com ele. E dei um beijo nele antes de ir embora." E a magia não termina aí: "Eu ainda sonho até hoje em poder voar," ele conta, explicando sobre o seu amor pelo extraterrestre de Steven Spielberg. Ele pausa por um momento e se inclina para a frente: "Nós podemos voar, sabe. Nós apenas não sabemos como usar os pensamentos certos para levitarmos do chão."

Michael Jackson como Peter Pan? A noção soa ridícula - até você considerar o ponto de vista de Michael. Sua saga tem o sabor de um conto de fadas moderno.

Crescendo no gueto sombrio de Gary, Indiana, o quinto filho de uma família de oito, ele praticamente saiu do berço para os palcos. Ele foi instruído por seu pai, um operador de guindaste que havia sido músico num grupo chamado Os Falcons. "Havia uma grande quadra de beisebol atrás da nossa casa," Michael relembra. "Você podia ouvir os gritos e a torcida da multidão. Mas eu nunca tive nenhuma vontade de jogar beisebol. Eu ficava lá dentro trabalhando, ensaiando." Aos cinco anos de idade, ele se apresentou para sua primeira platéia pagante com o Jackson 5. "Quando nós cantamos, as pessoas jogavam dinheiro no chão," conta Michael - "dezenas de dólares, muitas moedas de 10, 20 centavos. Eu me lembro dos meus bolsos ficarem tão cheios de dinheiro que as minhas calças caíam. E eu usava um cinto bem apertado. E comprava um monte de doces."

Recompensado: O grupo começou a vencer vários shows de talentos. De volta à Gary, eles tiraram um tempo para se apresentar num evento beneficente para a Muigwighania, uma organização local do orgulho negro, liderada por um homem chamado Richard Hatcher. Quando Hatcher, mais tarde, se tornou o primeiro prefeito negro da cidade, ele recompensou os Jacksons dando a eles o holofote no "Fim de Semana Soul" de 1968, com a Diana Ross e as Supremes. "Ele me conquistou no momento em que o vi," Ross contou à Newsweek em 1970. "Eu vi tanto de mim mesma quando criança no Michael. Ele se apresentava o tempo todo. Da mesma forma que era comigo. Ele podia ser meu filho." Ela convenceu seu chefe, Berry Gordy, a fazer um teste com o grupo na sua lendária gravadora Motown.

Em 1968, a companhia de Gordy havia se tornado uma das maiores empresas dos Estados Unidos controlada por negros - um império construído em músicas negras adocicadas para ouvidos brancos. O Jackson 5 era o número perfeito para a Motown: um banda de garotos tão fofos e bonitinhos que ninguém se sentiria ameaçado por sua sexualidade ou sua pele negra. Melhor ainda, seu cantor líder havia dominado todas as nuances da arte dos cantores de soul - a sinceridade de Jackie Wilson, o romantismo implorador de Smokey Robinson, a energia cinética de James Brown. Gordy cuidadosamente preparou o grupo e os entregou I Want You Back - uma das maiores faixas rock n roll já criadas. O disco estoura como pipoca. Americanos de todas as idades dançam em resposta, comprando mais de 2 milhões de cópias do single e transformando o Jackson 5 em superastros instantâneos.


Michael tinha agora 11 anos, um jovem veterano e ídolo de fã-clubes quando a maioria dos garotos sonha apenas em se atirar a um monte de areia nos dias de verão. Ele foi sacudido da neve cinza de Gary para o glitter esfumaçado de Hollywood. "Quando chegamos lá, nós fomos à Disneylândia," ele relembra. "Estava congelando em Indiana. Está congelando neste momento em Indiana. O sol, as piscinas, toda uma nova imagem, uma nova vida. Foi mágico."

Na verdade, a "mágica" envolvia muito trabalho duro, martelando hits para a linha soul da Motown. "Nós chamamos de 'soul-chiclete'", declarou Gordy em 1970. "É um estilo que agrada os adolescentes." A fórmula exata era, como sempre, rigorosamente controlada pela companhia. "Nós providenciamos total orientação," explicou o vice-presidente da Motown. "Nós providenciamos o material, criamos o seu som básico e trabalhamos em sua coreografia." Eles também instalaram um toque de recolher às 21h30.

Influências: Por três anos o regime funcionou. O Jackson 5 se tornou o grupo a vender mais rápido na história da Motown, ultrapassando predecessores como as Supremes e os Miracles. Por muitos anos Michael pôde assistir sua própria versão em desenho animado nas manhãs de sábado na televisão, no cartoon The Jackson 5. Apesar de provas tão vivas de sua própria impressionante influência, Michael ao longo destes anos todos se manteve envolto num casulo, rodeado por guarda-costas, tutores e seu círculo familiar - uma criança navegando em um mundo de adultos, obrigada a cantar canções de amor que ele mal podia entender. Crescendo nesta terra de fantasia ou faz-de-conta e de adoração na vida real deixou sua marca. "Eu odeio admitir," diz Michael, "mas eu me sinto estranho ao redor de gente comum. Veja, minha vida toda foi nos palcos. E a impressão que eu tenho das pessoas é de aplauso, veneração, gente correndo atrás de mim. Em uma platéia eu sinto medo, mas no palco eu me sinto seguro. Se eu pudesse, eu dormiria no palco. Sério."


A "Jacksonmania" gradualmente acalmou. Ao amadurecer, a voz soprano de Michael desceu uma oitava. Finalmente, em 1976, o grupo deixou a Motown por uma nova gravadora, Epic. Em 1978, Michael fez sua estréia no cinema, interpretando o Espantalho em The Wiz. Naquele ano, a carreira musical dos Jacksons ganhou ares novos com um álbum chamado Destiny - o primeiro álbum inteiramente composto e produzido pelo próprio grupo. O hit dance Shake Your Body (Down To The Ground) apresentava Michael, com 19 anos e auto-confiança, preenchendo o ar com soluços impacientes. Alguns meses mais tarde, quando o veterano arranjador de jazz e compositor de trilhas-sonoras Quincy Jones produziu Off The Wall, o primeiro álbum solo de Michael em cinco anos, ele acrescentou um verniz de elegância urbana ao estilo nervoso do cantor. O álbum vendeu mais de 5 milhões de cópias - e de repente, Michael Jackson estava de volta ao primeiro plano da música popular americana.

Por mais que ele tente escapar, ele desde sempre esteve sob os holofotes. Boatos rodeiam todos os seus romances. Há três anos atrás, a atenção era voltada para Tatum O' Neal. Este ano, só se fala em Brooke Shields. O próprio Michael indicou que ele gostaria de casar com Diana Ross. Ele mantém amizades com uma brilhante - e incomum - lista de estrelas: Katharine Hepburn, Liza Minnelli, Jane Fonda. Mesmo assim, ele leva uma vida sóbria e disciplinada, jejuando todos os sábados e dançando sozinho por 30 minutos todos os domingos. Ele não bebe, fuma ou fala palavrões: já que até a palavra "funky" deixa ele um pouco vermelho, ele usa a palavra "jelly" no lugar. Ele segue a fé de sua mãe e é um Testemunha de Jeová praticante, convencido, como ele canta em seu hit solo de 1979 - Don't Stop 'Til You Get Enough - da "força" dentro de nós - um instinto divino, puro e cicatrizador de amor, expressado através de seus próprios dons musicais. "O que me toca é muito especial", ele conta. "É uma mensagem que tenho de contar. Eu começo a chorar e a dor é maravilhosa. É fantástica. É como Deus."

Entusiasmo:
"Michael é uma máquina da verdade," conta Quincy Jones. "Ele tem um equilíbrio entre a sabedoria de alguém de 60 anos com o entusiasmo de uma criança." Em uma recente sessão de gravação, Michael passou cinco horas afinando um single inédito, pacientemente fazendo notas para seu engenheiro de som, calibrando cuidadosamente o som. Enfim terminado, ele saltou e gritou: "It's jelly time!" - e começou uma guerra de comida.

Ele continua dolorosamente tímido. Durante uma visita de um repórter a sua casa, a campainha tocou. Michael congelou em seu assento, lembrando que seu guarda-costas e seu assistente não estavam em casa. Cuidadosamente, ele se aproximou da porta e do olho mágico. Ele foi para a janela e olhou entre as persianas. Sua voz tremeu. "Eu nunca faço isto," ele disse, abrindo a porta. Nos degraus, um mensageiro havia deixado um novo pacote de partituras.

Coloque este temeroso homem-criança no palco, no entanto, e ele fará 50.000 pessoas levantarem de suas cadeiras. Dê a ele uma balada que ao fim ele fará todos suspirarem. "Aquela nota tocará toda a platéia," diz Michael. "O que eles jogam para você, você pega. Você segura, toca e joga de volta - é como um Frisbee."

O mesmo endiabrado prazer - e comando musical - brilha ao longo de Thriller, o novo álbum de Michael. A faixa-título dá o tom. Com um "rap" de Vincent Price, o mestre do macabro de Hollywood, e o uso de elaborado efeitos de som - um ranger de porta, um vento assobiando - a música evoca o riso de uma criança dentro de uma mansão mal-assombrada. E esta não é a única faixa com ar de montanha-russa. O álbum inteiro é uma miscelânea de truques surpreendentes: sintetizadores em fase, vozes que rodeiam o background, um bando que soa como um grupo de esquilos cantores.

Estas manobras logo empalidecem - e ficamos para nos maravilhar com as quatro novas composições de Michael. Cada uma é peculiar, estranha, profundamente pessoal, com letras que fazem alusão ao próprio mundo secreto de sonhos e demônios de Michael.

A Megera Malvada:
A sua canção nova mais sedutora, Billie Jean, é sobre um processo de paternidade aberto por uma astuta sedutora. "Billie Jean não é minha amante," lamenta Michael, cantando como se sua vida dependesse disto; "o garoto não é meu filho". A mesma megera - "talkin', squalin', spyin'" - aparece em Wanna Be Startin' Somethin', uma letra agitada cheia de versos à lá comédia screwball. Por exemplo: "Você é um vegetal/E ainda assim eles te odeiam... Você é apenas um buffet... Eles comem de você". Beat It, um incursão tempestuosa no hard rock macho, aconselha o ouvinte a fugir dos valentões - conselho cantando com o acompanhamento de um valente solo de guitarra. E então temos o atual hit Top 10, The Girl Is Mine, um dueto com Paul McCartney. Parece muito bonita e perfeitamente inócua - até você começar a pensar nas letras. As estações de rádio americanas já haviam tocado antes uma música sobre dois homens, um negro e outro branco, lutando pela mesma mulher?

Cada uma dessas letras poderia ser criticada por seus versos elípticos, frases estranhas e até ocasionais malapropismos. Mas como Paul McCartney disse na última primaveira, pouco após a gravação de The Girl Is Mine, tais queixas perdem o sentido. "A canção que eu acabei de gravar com Michael Jackson, você poderia dizer que é superficial," explicou McCartneu. "Tem até uma palavra - 'doggone' - que eu não teria colocado nela. Quando eu conversei com Michael, ele explicou que não estava procurando nada profundo - ele estava indo de acordo com o ritmo, ele estava sentindo. E ele estava certo. Não são as letras que são importante nesta música em particular - é muito mais o barulho, a performance, a minha voz, a voz dele."

E que voz Michael Jackson tem. Em baladas, ele é silencioso, reverente, treme, sua voz de tenor arqueando um falseto puro. Em faixas mais dançantes sua voz é rouca, extática, possuída - seu canto é um incrível repertório de chiados, cliques, gemidos, gritinhos, gemidos, quase qualquer som que pode ser manipulado ritmicamente. A voz de Michael assombra estas músicas, dá a elas coração. Isto transcende toda a parafernália eletrônica. É o que fará estas músicas durarem.

Em sua última turnê juntos, em 1981, os Jacksons abriram cada concerto mostrando um videoclipe feito sob a supervisão de Michael. Com a música Can You Feel It de fundo, um hino à humanidade composto em parte pelo próprio Michael, o vídeo consiste de imagens inspiradas pelo filme Contatos Imediatos de Terceiro Grau e pelos dourados musicais de Busby Berkeley durante a Depressão americana. Em certo momento, vemos os Jacksons aterrisarem na terra, cada um envolto em sua própria bolha. Em outra sequência, os Jacksons, retratados como seres humanos gigantescos, levantam um arco-íris, acendem as luzes do céu e polvilham as cidades com brilho de estrelas, fazendo crianças de todas as cores sorrirem em gratidão, banhadas pelos tons do arco-íris, estendendo as mãos para tocarem e segurarem uns aos outros. Estas imagens, que traem uma megalomania ingênua, têm uma pungência inegável. Aqui está um gigante negro que sacrificou sua infância para se tornar um ídolo pop, um semideus separado de seus companheiros, agora selado em uma bolha transparente - um solitário profeta da salvação, transparente através do milagre de sua própria música ingênua, que traz vida.


Traduzido por Bruno Couto Pórpora